História

A Faculdade Fluminense de Medicina

Sérgio Setúbal

Les bâtîments sont vieux!
Mais les coeurs et les idées brésiliens sont jeunes.
(São antigos os edifícios!
Mas jovens as idéias e o coração dos brasileiros.)
J. Marion, parasitologista francês,
em autógrafo deixado no livro de
visitantes do Hospital São João Batista, em 1932

Antônio Pedro

Em 1921, Antônio Pedro Pimentel tentou, com outros médicos de Niterói (Sena Campos, Artur Vítor e Andrade Neves), organizar a “Faculdade de Medicina do Estado do Rio de Janeiro”. Não se sabe por quais circunstâncias não persistiu este estabelecimento de ensino, se é que chegou a constituir-se. O certo é que, em 1925, Antônio Pedro e Sena Campos, aliados a dois grupos de médicos do Rio de Janeiro e de Niterói, fundaram, a 25 de junho, a “Faculdade Fluminense de Medicina”. O sucesso da iniciativa talvez se tenha devido ao apoio do Presidente do Estado do Rio de Janeiro, Abreu Sodré (antes da Revolução de 1930 os Governadores dos Estados chamavam-se também Presidentes), embora não tenha havido qualquer auxílio financeiro à nova Faculdade, que era, então, e continuou a sê-lo por muito tempo, um estabelecimento particular. O primeiro Diretor da Faculdade foi o próprio Antônio Pedro. A primeira aula, a 31 de maio de 1926, versou sobre “O Valor dos Estudos Experimentais na Biologia Geral”, e foi ministrada pelo Professor Otílio Machado, Catedrático de Biologia e Parasitologia. Embora particular, a Faculdade era sujeita à inspeção contínua por parte do Governo Estadual. O curso médico ministrado à primeira turma foi, aparentemente, rigoroso nos critérios de avaliação, pois os índices de reprovação eram muito altos nas diferentes Disciplinas e chegavam, às vezes, à 35%.

Um dos problemas com que se debatia a jovem Faculdade era a escassez de candidatos aptos à matricula. É interessante notar que, em 1925, por ocasião da fundação da Faculdade, “Niterói não possuía um ginásio onde os candidatos à mesma [Faculdade] pudessem realizar ou complementar o seu curso secundário”31. O Liceu Nilo Peçanha só foi criado em 1931. Por este motivo foi instituído pela Faculdade, sob supervisão do Governo Estadual, tal como também o faziam outros institutos de ensino superior pelo país afora, um “Curso Anexo”, com a finalidade de preparar candidatos. Este curso foi extinto em 1926, e substituído pelo Liceu Fluminense de Humanidades, que funcionou, patrocinado pela Faculdade, e também sob fiscalização oficial, até março de 1930. Em 1931 foi instituído na própria Faculdade um Curso Vestibular, “para suprir as deficiências dos cursos secundários”31. A aula inaugural foi proferida pelo Professor Adão Pecegueiro do Amaral a 15 de junho de 1931. O Curso Vestibular funcionou pelo menos até 1950. Em 1948 chegou a matricular 194 alunos. Por volta de 1950 era comum que se defendesse a idéia de deixar, em todo o Brasil, o segundo ciclo do curso secundário a cargo das Universidades, no que seriam os “Colégios Universitários”.

A 25 de agosto de 1927 a Prefeitura de Niterói cedeu à Faculdade, que até então não tinha uma sede própria, o (outrora) belo prédio do Instituto Anatômico, e instituiu para ela um auxílio financeiro anual, inicialmente de Rs. 24.000$000 (24 contos de réis), e mais tarde elevado para Rs. 75.000$000. A mesma lei permitiu que a Faculdade utilizasse, para as atividades de ensino teórico e prático, os gabinetes, salas, laboratórios e enfermarias do Hospital São João Batista, bem como os da Maternidade anexa. A partir de 25 de setembro de 1929, no governo do Presidente Manoel Duarte, a Faculdade foi estadualizada, tendo sido o currículo substancialmente alterado, passando a incluir Disciplinas (Tisiologia, Urologia, Anatomia Médico–cirúrgica, Puericultura, Patologia Nervosa e Endocrinologia) que não constavam do currículo das Universidades Federais.

Em outubro de 1930 eclode o movimento revolucionário que poria fim à República Velha, a chamada Revolução de 30. Os Presidentes da República e dos Estados são depostos, e substituídos estes últimos por Interventores Federais nomeados pelo novo chefe da nação, Getúlio Vargas. A 11 de novembro de 1930 faleceu trágica e prematuramente o Professor Antônio Pedro (quando ia, de automóvel, prestar contas de sua administração a Plínio Casado, que tinha sido designado Interventor no Estado do Rio). Foi substituído na direção da Faculdade pelo Professor Manoel José Ferreira .
O Interventor Plínio Casado, alegando não ser possível ao Estado arcar com o ônus do ensino superior, concede, a 31 de dezembro de 1930, a autonomia financeira à Faculdade, embora “preservando-lhe as prerrogativas de instituição oficial”. Não está claro quais eram estas prerrogativas, mas é bem evidente o que significava esta “autonomia financeira”: a escola, desonerando o Estado, passaria a viver das mensalidades pagas pelos alunos, tal como antes, e das subvenções que surgissem 38. Note-se que nesta ocasião a primeira turma ainda não se formara, o que só viria a dar-se em 1931. Não deve ter sido das mais confortáveis, a partir de então, a situação financeira do jovem estabelecimento de ensino. Manoel Ferreira, o segundo diretor, apelou aos Professores para que abrissem mão de seus proventos, e chegou mesmo a pedir auxílio ao comércio de Niterói e do Rio de Janeiro, no sentido de obter os fundos necessários ao funcionamento da escola. É interessante notar que, durante um ou dois anos, os professores trabalharam sem qualquer remuneração, a não ser, talvez, aquela devida ao prestígio decorrente da posição de professor da Faculdade. O Interventor parece não ter tido a intenção de prejudicar a escola, pois, a 7 de janeiro de 1931, cede à Faculdade o (então) magnífico prédio da Rua Visconde de Morais, nº 101. Do esforço de Manoel Ferreira, e dos professores, parece ter resultado algum progresso, com a construção de seis grandes laboratórios e dois anfiteatros no prédio que hoje abriga o Instituto Anatômico. No prédio cedido pelo Interventor, cinco amplos ambulatórios foram construídos, e a Faculdade, que funcionava no Instituto Anatômico, mudou-se para lá.

A Faculdade, durante os seus primeiros seis anos de existência, teve, assim, um status semi-oficial. Em outubro de 1931 há um novo Interventor Federal no Estado do Rio, Mena Barreto, que dá nova organização à Faculdade, mantendo a sua autonomia didática e financeira, mas assegurando a sua condição de estabelecimento oficial, “mantido pelo Estado”, isto é, subvencionado pelos cofres públicos estaduais 38. Nesse mesmo mês, o Departamento Nacional de Ensino, equivalente então ao atual Ministério da Educação, equipara a Faculdade aos outros cursos médicos do país e reconhece como oficiais os diplomas por ela concedidos à primeira turma, que então se formava. A 4 de junho de 1932, um novo Interventor Federal, desta vez Ari Parreiras, anexa à Faculdade a Escola de Odontologia e Farmácia, com a mesma “autonomia financeira” de que gozava a Faculdade de Medicina. Supõe-se, pela expressão entre aspas, que a subvenção oferecida à Faculdade não sofreu acréscimo, apesar dos novos encargos decorrentes da administração e funcionamento das novas escolas. Embora não se possa, com os dados disponíveis, estabelecer uma ligação entre os dois acontecimentos, o fato é que, um mês depois, ou seja, em julho de 1932, exonerou-se, a pedido, o diretor da Faculdade. Segundo informação verbal do Professor José Rodrigues Coura 100, o Professor Manoel Ferreira afastou-se da Faculdade para envolver-se na luta que então o Estado de São Paulo movia contra o restante do país, a Revolução Constitucionalista de 1932. O Professor tinha sido encarregado de fazer no exterior a compra de armas para os insurgentes, e teria acabado preso, só sendo libertado ao final do conflito. Assumiu o seu lugar o Professor Antônio de Barros Terra, o mais antigo dos membros do Conselho Técnico e Administrativo da instituição.

Barros Terra

Antônio de Barros Terra é considerado o consolidador da Faculdade de Medicina. Seu nome é lembrado, para os alunos de hoje, por denominar, a partir de 1945, o Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina, que já existia, entretanto, desde 1926. A pressão política exercida pelo Diretório Acadêmico Barros Terra (DABT) junto à prefeitura de Niterói parece ter sido fundamental para a cessão do prédio da rua Visconde de Morais à Faculdade, em 1931. Nesse mesmo ano, demonstrando o seu apreço à Faculdade e sua capacidade de mobilização, os alunos recusaram-se, orgulhosamente, a transferir-se para o Rio de Janeiro, atendendo uma solicitação do novo Governo Federal, que tencionava fundir as duas Faculdades, extinguindo a de Niterói.

Barros Terra foi sucessivamente reeleito Diretor da Faculdade até o ano de 1945, quando, por motivos de saúde, foi obrigado a afastar-se. Sua primeira grande iniciativa foi a reunião do “Gabinete Radiológico” e dos cinco ambulatórios então existentes (Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Pediatria, Clínica Médica, Ginecologia e Urologia) com a Clínica Odontológica, para formar a Policlínica da Faculdade de Medicina. Faltava apenas um prédio que a abrigasse, ou melhor, faltavam os 500 mil contos de réis necessários para construí-lo. Solicitando auxílio ao Interventor Ari Parreiras, o Diretor da Faculdade consegue, do Governo Estadual, a liberação de 300 mil contos. Da Prefeitura de Niterói obtém 30 mil contos, e da própria Faculdade, os restantes 170 mil contos. O prédio da Policlínica foi inaugurado a 10 de outubro de 1934. Durante a cerimônia de inauguração, Carlos Chagas fez um discurso sobre “As novas diretrizes da Defesa Sanitária do Brasil”. A policlínica, que atualmente alberga a Faculdade de Odontologia da UFF, e que até hoje impressiona pelo seu tamanho, abrigava, à época de sua inauguração, dois grandes anfiteatros e 21 ambulatórios.

Em 1937 assume um outro Interventor Federal, Alfredo Neves. Novamente, o peso dos encargos com o ensino superior é considerado excessivo para o Estado. A 26 de março de 1938 um decreto transforma a Faculdade de Medicina em Instituto Autônomo, e a Faculdade Fluminense de Odontologia volta a ser a Escola Anexa de Odontologia. A Congregação da Faculdade de Medicina organiza-se como uma sociedade de direito privado. A escola passou a submeter-se à inspeção federal permanente. Esta situação de privatização perdurou até dezembro de 1950, quando a Faculdade foi federalizada, ainda no governo de Eurico Gaspar Dutra.

No final da década de 30, ainda sob a direção de Barros Terra, a Faculdade fez construir um novo prédio de três pavimentos (o “edifício anexo”), atrás do prédio principal, na Rua Visconde de Morais, nº 101. Este prédio passou a abrigar a Biblioteca, e diversos setores da administração, inclusive os gabinetes do Diretor e do Inspetor Federal, bem como os Laboratórios de Farmacologia e Patologia Geral 31.

O período 1945-1950
A 30 de setembro de 1945 afastou-se, por motivos de saúde, o Diretor Barros Terra. Foi substituído pelo Professor Tomás Rocha Lagoa, Catedrático de Anatomia 31, que esteve à frente da Faculdade até 1950.Dirigiram a Faculdade, a seguir, os professores Parreiras Horta (Dermatologia), novamente Rocha Lagoa, Rubens de Siqueira (Farmacologia), Ruben David Azulay (Dermatologia), e Hiss Martins Ferreira (Biofísica).
Orgulhava-se a Faculdade, por volta de 1950, de ter, desde 1931, técnicos especializados que, em regime de tempo integral, e sob orientação dos professores e de seus assistentes, repetiam os assuntos dados em aula, a qualquer hora do dia, mediante solicitação dos alunos. O curso médico era freqüentado, em 1949, por 768 alunos. Supõe-se que as turmas tinham, em média, entre 125 e 130 alunos, pois o curso durava seis anos. No ano anterior, 1948, o número acumulado de médicos diplomados desde a fundação já era de 1.487, ou sejacerca de 80 a 90 médicos a cada ano. O nível do ensino era considerado excelente, e grande o rigor dos exames.

Nessa época, entre 1949 e 1950, a Faculdade lutou muito pela sua federalização. Era, como já foi dito, um estabelecimento particular, sobrevivendo de taxas de matrículas e mensalidades pagas pelos alunos, de subvenções, e de serviços médicos concedidos à população, mediante pagamento. Os argumentos para a federalização eram vários. O próprio Ministro da Saúde, Clemente Mariani, considerava que “desde [o momento em que], porém, que tais escolas venham a atingir grande desenvolvimento, abrigando várias centenas de alunos (e a Faculdade Fluminense de Medicina tem atualmente 861), não poderão manter-se, mesmo com grandes subvenções, salvo exigindo dos seus alunos taxas tão pesadas que somente os ricospoderão freqüentá-las, resultando daí, ou sua ruína e desaparecimento, pela matrícula reduzida, ou tal relaxamento no ensino para atrair alunos e sobreviver, que a conseqüência será ainda pior para a cultura científica do país”. Sob o aspecto econômico, considerava-se ainda que o Governo faria “melhor, mais acertada e economicamente, tomando a seu cargo federalizar faculdades já existentes, já desenvolvidas, já conhecidas e de renome no país e no estrangeiro, como as de que trata o projeto, já aparelhadas até certo ponto, contando com corpo docente conhecido e de valor, dispondo de edifícios, gabinetes, e laboratórios que nada custarão à União, a não ser melhorá-los e enriquece-los, do que criar novas escolas, caso este em que tudo teria de construir, adquirir e organizar. Havia também a preocupação de federalizar escolas que tivessem importância regional. Sob este ponto de vista, na Faculdade Fluminense de Medicina, apenas 35% dos alunos matriculados eram do Estado do Rio .

A Escola Federal e a Universidade

A federalização da Faculdade deu-se finalmente em dezembro de 1950, na administração de Parreiras Horta, em decorrência da perseverança de diretores e docentes interessados, após longas negociações políticas nos ministérios e na Câmara dos Deputados. Cessaram, desde então, as agruras financeiras da Faculdade. As condições de ensino melhoraram muito, com a riqueza das verbas destinadas a ela pelo Governo. Os funcionários, que tinham seus salários atrasados já de alguns meses, receberam com júbilo, segundo a lembrança de uma antiga secretária da Faculdade 51, a sua transformação em funcionários públicos federais. Durante dez anos, a Faculdade Fluminense de Medicina existiu como um escola federal isolada de ensino superior.

A lei 3.848, de 18 de dezembro de 1960, criou, com a incorporação da Faculdade de Direito de Niterói (existente desde 1912), da Faculdade Fluminense de Medicina, da Faculdade de Farmácia e Odontologia do Estado do Rio de Janeiro, da Faculdade Fluminense de Odontologia e da Faculdade de Medicina Veterinária, e ainda com a agregação da Faculdade Fluminense de Filosofia, da Faculdade Ciências Econômicas, da Escola Fluminense de Engenharia, da Escola de Enfermagem, e da Escola de Serviço Social, uma nova instituição de ensino, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ). Em 1961, as cinco escolas agregadas foram definitivamente incorporadas à Universidade. A lei 4831 de 5 de novembro de 1965 alterou-lhe a denominação, que passou a ser Universidade Federal Fluminense (UFF) . 

Fontes:
FACULDADE Fluminense de Medicina. Sua Fundação e Evolução. Niterói, sem editor, sem data, folheto, 27 p., circa 1950, em poder da Biblioteca da Faculdade de Medicina da UFF.
GARCIA, P.M. Crônica da Faculdade Fluminense de Medicina. Separata impressa com 8 páginas, numeradas de 207 a 214, circa 1975. Origem não identificada. Em poder do autor.
LINHARES, C.F.S., Estrutura da UFF. Original datilografado, ilustrado com organogramas, sem data. Em poder do Centro de Memória Fluminense, da Biblioteca Central da UFF.
MACHADO, M.A.L. Informação verbal, 13 de maio de 1996.
COURA, J.R. Informação verbal, 21 de agosto de 1996. 

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